3.1. Princípio da Boa Ordem (PBO)
Definição 16 O natural é menor elemento de um conjunto não vazio se, e só se,
Vamos assumir o seguinte princípio como um axioma.
Princípio da Boa Ordem: Todo não-vazio tem um menor elemento.
Esse fenômeno não ocorre nos conjuntos numéricos como e . Por exemplo o intervalo em não tem menor elemento, enquanto que em tem menor elemento. Essa é uma das propriedades que caracterizam os números naturais, todo subconjunto não-vazio tem menor elemento.
Esse princípio pode ser usado em demonstrações, usualmente provas por contradição: supomos que um formado por contra-exemplos do que se quer provar é não vazio e derivamos uma contradição, concluindo que é vazio.
Teorema 20 Qualquer postagem que custe pelo menos oito reais pode ser feita com selos de e reais.
Demonstração: Vamos chamar de postal se pode ser um valor obtido a partir de selos de e reais. Por exemplo é postal pois , também é postal pois e é postal pois .
O teorema afirma que para todo , é postal. Suponha que a afirmação do teorema é falsa. Seja o subconjunto dos naturais não-postais. Por hipótese , portanto tem um menor elemento . Pelas considerações acima sabemos que . Se então e é postal, existem naturais e tais que .
Se então , uma contradição.
Exercício 12 Prove usando o PBO. Para todo inteiro , existem naturais e tais que .
(Solução)
Teorema 21 Não existe um número natural entre e .
Demonstração: Suponha que a afirmação do teorema é falsa e seja o conjunto dos naturais entre e . Por hipótese logo tem um menor elemento , .
Se então , uma contradição ao fato de ser mínimo pois . Portanto, .
Teorema 22 Todo número natural tem um divisor primo.
Demonstração: A prova dessa afirmação é por contradição, suponha que não é todo natural que admite um divisor primo e seja o subconjunto desses naturais. Por hipótese , portanto tem um menor elemento .
Se então não é primo, logo com . Todo divisor primo de (e de ) divide , portanto , uma contradição ( é menor que o menor elemento de ).
Exercício 13 é dito limitado superiormente se existir um natural tal que
e se com a propriedade acima pertence a ele é dito maior elemento de . Mostre que se é limitado superiormente e não vazio então admite maior elemento.
3.2. Princípios de indução
Há várias formulações equivalentes para o Princípio de Indução.
Teorema 23 (Princípio da Indução finita (PIF)) Seja . Se
- e
- para todo , ,
então .
Demonstração: Seja um subconjunto dos naturais que satisfaz as hipóteses do teorema. Suponha que a conclusão do teorema seja falsa, ou seja, suponha que . Então é não vazio e, pelo PBO, tomamos o menor elemento de .
De temos , portanto é natural. Pela minimalidade de temos que . Pela hipótese 2 do teorema, se então . Portanto , uma contradição.
A forma mais comum desse princípio é enunciada como a seguir.
Corolário 24 (Princípio da Indução finita (PIF)) Seja um predicado de números naturais. Se valem
- e
- para todo , implica ,
então para todo natural .
Demonstração: Seja um predicado com as hipóteses dadas. Faça e temos, da hipótese 1, e da hipótese 2, se então . Assim, estamos nas hipóteses do teorema 23 e podemos concluir que , ou seja, é verdadeiro para todo natural .
Corolário 25 (Princípio da Indução finita generalizado (PIF)) Sejam um predicado de números naturais e . Se valem
- e
- para todo , implica ,
então para todo natural .
Demonstração: Como na demonstração anterior, agora faça e temos pelo teorema 23 que . Se é verdadeiro para todo então é verdadeiro para todo .
Teorema 26 (Princípio da Indução finita completo (PIFc)) Seja tal que
- para todo , .
Então .
Demonstração: Seja que satisfaz as hipóteses do teorema.
Defina o conjunto .
Então pela condição 1 da hipótese do teorema.
Considere um natural arbitrário e suponha que . Se então pela condição 2 da hipótese do teorema. Portanto, para todo , .
Pelo PIF, portanto .
Corolário 27 (Princípio da Indução finita completo (PIFc)) Seja um predicado de números naturais. Se
- e
- para todo , e e e implica ,
então é verdadeiro para todo natural .
Demonstração: Exercício.
Corolário 28 (Princípio da Indução finita completo generalizado (PIFcg)) Sejam um predicado de números naturais e . Se
- e
- para todo , e e e implica ,
então para todo natural .
Demonstração: Exercício.
Exercicio 14A (Outro princípio de indução) Verifique o seguinte Princípio de Indução Finita: Seja um predicado a respeito de . Se
- e e … e e
- para todo , Se e e … e então
então para todo .
Exercício 14B (Outro princípio de Indução) Seja uma sequência (estritamente) crescente de números naturais. Verifique o seguinte Princípio de Indução Finita: Seja um predicado a respeito de . Se
- para todo e
- implica para todo
então para todo .
3.3. Equivalência
Acima deduzimos PIFc de PIF e PIF de PBO. Todos esses princípios são, de fato, equivalentes, logo se assumimos qualquer um deles o outro pode ser provado. Para provar a equivalência vamos provar que PBO segue de PIFc e teremos
Demonstração: [Demonstração de PIFc PBO]
Seja não vazio. Vamos provar que tem um menor elemento. A prova é por contradição, suponha que não tem menor elemento. Definimos
e vamos provar
que: , e para todo , se então .
Se então , portanto é o menor elemento de , contradição. Com isso provamos que . Seja arbitrário e suponha . Se então , portanto é o menor elemento de , já que , contradição. Portanto e, generalizando universalmente, provamos para todo , se então .
Com e podemos usar o PIFc para concluir que , ou seja , uma contradição. Portanto, tem menor elemento.
3.4. Demonstrações por indução
Indução matemática também é uma técnica de prova para proposições da forma . Numa prova por indução provamos (isto é, verificamos que a instanciação da variável com resulta numa sentença verdadeira) que é dito a base da indução e provamos (usando as estratégias que já aprendemos para isso) que é dito o passo da indução.
Exemplo: Para todo , .
base: Para a igualdade afirmada se verifica
passo: Seja um natural arbitrário e suponha que . Precisamos mostrar que .
Exemplo: Para todo , .
base: Para a desigualdade afirmada se verifica .
passo: Seja um natural arbitrário e suponha que . Precisamos mostrar que .
A base é importante, sem ela poderíamos pensar que sabemos provar
é ímpar para todo
que obviamente não vale, pois conseguimos provar a implicação do passo da indução para essa sentença. Vamos provar que
para todo , ímpar ímpar.
Seja um natural e suponha que é ímpar. Então
que é da forma “ímpar par”, portanto ímpar.
O passo é importante, uma prova descuidada do passo indutivo pode por tudo a perder. Por exemplo, vamos provar que todos os naturais são iguais. Tomemos como o maior dentre os naturais e , por exemplo, e .
Seja a sentença
Se então , portanto é verdadeiro.
Seja arbitrário e assuma , isto é, que
Vamos provar , isto é, que .
Sejam e naturais arbitrário tais que .
Se fizermos e , então e, pela hipótese da indução, deduzimos que . Mas, se então . Portanto , e com isso temos .
Pelo PIF, é verdadeiro para todo .
Para concluir, sejam e números naturais. Se então por . Se então por . Logo quaisquer dois números naturais são iguais.
Qual é o problema da demonstração? (Solução)
Exemplo: Todo polígono convexo com lados pode ser decomposto em triângulos.
Exemplo: Se em moedas 1 é falsa, mais leve, então é possível descobrir a moeda falsa em pesagens numa balança de 2 pratos.
Demonstração: Se então a afirmação vale trivialmente, a única moeda é a falsa.
Seja um natural arbitrário e suponha que para moedas sabemos encontrar a mais leve usando pesagens. Consideremos um conjunto com moedas e dividimos as moedas em duas partes iguais de moedas. Comparamos essas metades usando 1 pesagem e na metade mais leve achamos a moeda falsa com pesagens, totalizando pesagens.
Portanto, pelo PIF, se em moedas 1 é mais leve, então é possível descobrir a moeda leve em pesagens, para qualquer .
Exemplo: Para todo natural , é primo ou pode ser escrito como produto de primos.
Numa tentativa de prova usando o corolário 24 temos:
—a base é fácil, é primo;
—no passo temos que provar que se é primo ou produto de primos então é primo ou produto de primos. Se é primo a implicação é verdadeira (vacuidade), se é composto então, por definição de número composto onde são números naturais. Se soubéssemos que e são primos ou produtos de primos então seria produto de primos, mas só o que sabemos é que é produto de primos.
Esse problema pode ser contornado com o corolário 27. Se a hipótese vale para todo então é produto de primos, é produto de primos, portanto é produto de primos:
Seja a sentença é primo ou pode ser escrito como produto de primos.
base: é primo, portanto .
passo: Seja um natural arbitrário e suponha
Precisamos provar . Em dois casos: se é primo então . se não é primo então com . Pela hipótese (25) valem e portanto é um produto de primos, portanto . Pelo PIFc, para todo .
Outro exemplo de prova errada: Seja a sentença: para todo natural, .
Vamos provar por indução em . Para a sentença é, claramente, verdadeira.
Seja um natural arbitrário e vamos provar que .
Assuma . Então e, por e temos .
Portanto , ou seja .
Pelo PIFc, vale para todo .
Qual o erro?
3.5. Princípio da casa dos pombos
O princípio da casa dos pombos diz que se em casas () distribuirmos mais de pombos, então alguma caixa conterá mais de um pombo.
Teorema 29 (PCP) Se em caixas () distribuírmos objetos, então alguma caixa conterá mais de um objeto.
Demonstração: Provaremos usando indução no número de caixas .
Se a afirmação é verdadeira.
Seja arbitrário e suponha que se distribuímos objetos em caixas, então alguma caixa conterá mais de um objeto.
Considere que objetos são distribuídos em caixas. Escolhemos uma das caixas, se essa caixa escolhida tem mais de um objeto, a afirmação está provada. Senão, na caixa escolhida há no máximo um objeto. Isso significa que objetos foram distribuídos nas outras caixas restantes logo, por hipótese, alguma caixa restante conterá mais de um objeto.
Exercício Sejam conjuntos e . Suponha que para dois conjuntos quaisquer e vale que ou . Prove, por indução, um desses conjuntos é subconjunto de todos eles.
Exercício Deduza o PIF do PCP.
Definição 17 Quando a indução é usada para definir objetos chamamos de definição recursiva .
Conhecemos vários exemplos de definição recursiva
- o fatorial: e para todo , ;
- o somatório: e para todo , ;
- o produtório: e para todo , ;
- exponencial: e e para todo , ;
- sequência de Fibonacci: , e para todo .
Definimos qualquer função com domínio recursivamente em duas etapas: na base especificamos o valor da função e no passo damos uma regra para encontrar seu valor em um inteiro em função de seus valores no inteiros menores que . Tal definição é chamada de definição recursiva ou indutiva.
Definição 18 Uma função é o mesmo que uma sequência com . Uma recorrência é uma sequência definida recursivamente.
As funções definidas recursivamente estão bem definidas. Isso significa que dado qualquer podemos usar as duas partes da definição para encontrar o valor da função no ponto de forma inequívoca.
Exercício 16 Use o PIF para provar que uma função definida pela especificação de e uma regra para obtenção de a partir de está bem definida.
Exercício 17 Use o PIFc para provar que uma função definida especificando e uma regra para obter dos valores para está bem definida.
Exemplo: uma progressão aritmética que começa em e tem razão é uma sequência tal que
Podemos provar por indução que para todo , . De fato, a base () é verdadeira, portanto confere com a definição. Seja um natural arbitrário e suponha que . Vamos provar que .
por definição e por hipótese. Portanto, . Portanto, pelo PIF, para todo , .
Exercício 18 Uma progressão geométrica é uma sequência definida pela recorrência e para todo onde e são valores reais, chamados de termo inicial e razão da progressão. Prove usando indução que o termo geral de uma progressão geométrica é para todo .
Teorema 30 Defina por
- para todo , .
OS únicos elementos em são os obtidos pela aplicação dessa regras. Então é o subconjunto dos naturais ímpares.
Para provar que provaremos duas inclusões e .
Demonstração:
Provamos que por contradição. Suponha existir um elemento de que não está em . Então . Seja o menor deles, que existe pelo PBO. Certamente . De temos e da definição . De mínimo, , portanto e , uma contradição.
Para provar que vamos usar indução. A base: para temos e pela hipótese 1 do enunciado do teorema. Seja arbitrário e suponha que . Então , pela hipótese 2 do teorema, ou seja, . Pelo PIF temos para todo .
Exercício 19 Suponha que um casal de urubus começa a dar crias com dois anos de idade, e produz crias (três casais) de urubuzinhos a cada ano. Suponha que um lixão começou a ser frequentado por casal recém-nascido e que nenhum urubu é acrescentado ou eliminado do lixão. Escreva uma definição recursiva para o número de urubus que existem no ano .
Exercício Considere um conjunto de números naturais definido recursivamente da seguinte maneira:
- ;
- se e então .
Prove que é o conjunto dos naturais múltiplos de 3.
Obs: , acima não são necessariamente distintos. Os únicos elementos de são os obtidos pelas regras acima.
Dica: Primeiro prove que para todo natural , vale . Depois prove que todo elemento de é múltiplo de 3.