Uma característica importante dos números naturais é que eles respondem a pergunta quantos elementos tem esse conjunto? Ou seja, os naturais constituem o modelo matemático que torna possível o processo de contagem.
Contagem é o processo de criar uma bijeção entre um conjunto que queremos contar e algum conjunto cujo tamanho já sabemos. O tamanho de um conjunto é chamado de cardinalidade. Geralmente, não fornecemos uma bijeção explícita para calcular o tamanho de um conjunto, mas sim nos baseamos em princípios de contagem derivados dos processos de construção de conjuntos. O ramo da matemática que estuda conjuntos construídos pela combinação de outros conjuntos é chamado de Combinatória e a subárea que estuda os métodos de contagem é chamada de Combinatória Enumerativa.
Cardinalidade é um conceito da Teoria dos Conjuntos que estende para qualquer conjunto a noção quantidade de elementos de um conjunto, a qual é intuitivamente clara no caso de conjuntos finitos: a cardinalidade de um conjunto finito é o número (natural) de elementos no conjunto. Os números cardinais transfinitos descrevem os tamanhos de conjuntos infinitos. Na verdade, a ideia de cardinalidade torna-se bastante sutil quando os conjuntos são infinitos. Há uma sequência transfinita de números cardinais:
Os índices dos números alef () são números ordinais.
7.1. Bijeções
Para contar os elementos de um conjunto é usamos a noção de correspondência biunívoca, ou bijeção, ou função bijetiva. Dois conjuntos têm a mesma cardinalidade se, e somente se, há uma correspondência um-para-um (bijeção) entre os elementos dos dois conjuntos.
Definição 21 Uma função é injetiva quando .
Uma função é sobrejetiva quando .
Uma função é bijetiva quando for injetiva e sobrejetiva, isto é, quando .
Definição 22 A cardinalidade de é denotada por . Dois conjuntos têm a mesma cardinalidade, se, e somente se, existe uma bijeção .
Escrevemos para abreviar que existe injetiva.
Exercício 30 Verifique que , dada por é bijetiva. A função tem a seguinte interpretação gráfica
Para cada o valor é dado pela intersecção da reta que passa por e por com o eixo . Usando semelhança de triângulos temos
donde tiramos a expressão para .
Exercício 32 Prove que se e são bijeções então a função composta é bijeção.
Alguns exemplos importantes
- ;
- ;
- ;
- ;
- ;
- .Que : um subconjunto pode ser representado por uma sequência binária infinita em que , para todo . Essa sequência é mapeada na representação binária de um número real do intervalo ; tal função é injetora (verifique).
Que : defina e verifique que é injetiva.
Para mostrar que definimos a função dada por
Dado , se é par então para algum , portanto ; senão é ímpar, para algum , portanto . Assim é sobrejetora. Agora, se então ou e em ambos os casos . Portanto a função é bijetora.
Claramente há uma função injetiva pois , logo . Para mostrar que consideremos os racionais não-nulo dados pelas frações da forma
agora, definimos por e
que é injetiva (verifique). É possível exibir um bijeção entre e mas isso também é bastante trabalhoso.
Dos exercícios 30 e 31 temos as bijeções , dada por , e , dada por , que estabelecem que pois também é bijeção.
Neste exemplo temos a famosa demonstração de Cantor por diagonalização. Como , temos logo precisamos mostrar que . Para tal, mostraremos que . Suponha que exista bijetiva. Se existe tal então podemos enumerar (todos) os elementos do intervalo
com . Consideremos o número real
Esse número pertence ao intervalo pois , logo é diferente de , e logo é diferente de . Ademais, pois para todo , uma contradição. Portanto, não existe bijetiva, tampouco bijetiva.
Aqui é suficiente basta mostrarmos que pois, claramente, temos pela injetiva para todo .
Um ponto no quadrado é da forma com e e uma função injetiva sobre é dada quando mapeamos tal ponto em de .
Sob a hipótese do contínuo .
7.2. Conjuntos finitos
Definimos para todo natural .
Definição 23 A cardinalidade do vazio é , . Se então se existe uma bijeção .
Uma tal bijeção é chamada de enumeração ou contagem dos elementos de . Desse modo, e dizemos que tem elementos.
Exercício 33 Se é conjunto e e são bijeções então .
Note que a relação de ordem entre cardinais, definição 22, no caso finito concorda com a representação conjuntista de número natural que apresentamos na ocasião dos Axiomas de ZFC: , Assim pois existe injetiva, a saber .
Teorema 38 (princípio aditivo) Se e são conjuntos finitos e disjuntos, então .
Demonstração: Sejam e conjuntos disjuntos com cardinalidade e , respectivamente. Se pelo menos um deles for vazio então o teorema vale como pode ser verificado facilmente.
Vamos supor e vamos mostrar uma bijeção .
Se e são bijeções então definimos por
é sobrejetora: se , então ou , mas não em ambos já que são disjuntos. Se então para algum , portanto . Se então para algum , portanto, . Ainda, é injetora: como e são disjuntos, se então ou , em ambos os casos .
Exercício 34 Prove usando indução em que se são conjuntos dois-a-dois disjuntos então
Teorema 39 (princípio multiplicativo) Se e são conjuntos finitos não vazios, então .
Demonstração: Seja e para alguma enumeração de . Definimos os conjuntos dois-a-dois disjuntos
de modo que , para todo , pela bijeção .
Assim, é uma partição de (verifique) e
onde a segunda igualdade segue do exercício 34.
Exercício 35 Prove o teorema acima exibindo uma bijeção entre e .
Exercício 36 (prove usando indução em uma generalização do princípio multiplicativo e use-a para concluir a igualdade proposta).
Teorema 40 Todo conjunto de cardinalidade tem subconjuntos distintos, isto é,
Demonstração: Seja um conjunto de cardinalidade . Se então é o único subconjunto dele mesmo e .
Se então existe uma bijeção . Como , cada subconjunto corresponde a uma, e só uma, sequência dada por
para cada , ou seja
assim definida é bijetiva (verifique), de modo que , portanto .
Teorema 44 (Princípio da Casa dos Pombos) Sejam e conjuntos finitos não vazios. Se existe função injetiva então .
Antes de demonstrar esse resultado definimos a imagem inversa de pela função como o conjunto
e notemos que se for sobrejetiva então para todo ,e se for injetiva então para todo .
Demonstração: Sejam e conjuntos finitos. Suponha que que seja uma função injetiva.
Se é finito, então existe para algum , de modo que
Se é função então é a união
de conjuntos disjuntos dois-a-dois. Ademais, se injetiva então para todo . Pelo princípio aditivo
Pela injetividade
portanto .
Corolário 45 Sejam e conjuntos finitos não vazios. Se então para toda existe tal que
Demonstração: Seguindo a demonstração do teorema, se não existe tal então
que é uma contradição.
Exemplo: Dado , existem números inteiros positivos e , com um , tal que é divisível por . Considere os seguintes números
como há 10 possibilidades para o algarismo da unidade, a saber , dois desses números, digamos e com , termina com o mesmo algarismo de modo que é divisível por 10.
Exercício 39 Se cinco pontos são distribuídos num quadrada de lado 1 então há dois deles cuja distância é no máximo .
Exemplo: Em qualquer escolha de mais que números do conjunto um dos escolhidos será múltiplo de um outro escolhido. Se então, pelo teorema fundamental da aritmética, esse número pode ser escrito de forma única como com naturais e ímpar. Se é ímpar, então . Então, em mais que números dois deles terão o mesmo divisor ímpar, digamos e . O maior deles é múltiplo do menor.
Exercício 40 Em qualquer escolha de mais que números do conjunto haverão dois deles primos entre si.
7.3. Conjuntos enumeráveis
O conjunto é dito enumerável se é finito ou se tem a mesma cardinalidade de , isto é de modo que . , e são enumeráveis. não é enumerável.
O conjunto dos naturais não é finito. De fato, se houvesse uma bijeção então tomaríamos o número natural de modo que pertenceria à imagem de contradizendo que para todo .
7.4. Conjuntos infinitos
Definição 25 é infinito se, e só se, não é finito.
No caso de conjuntos infinitos não se pode falar em quantidade de elementos e, além disso, dizer simplesmente que são infinitos elementos não diz muita coisa desde que Cantor nos mostrou a possibilidade de vários “tamanhos” de infinito, como veremos a seguir.
Definição 26 é o menor cardinal infinito.
Teorema 41 (Teorema de Cantor) Para todo conjunto , .
Demonstração: Se é finito então . Seja um conjunto infinito e vamos mostrar que e que . A função
é injetiva, portanto .
Para mostrar que provaremos (por contradição) que não há sobrejeção .
Suponhamos que é sobrejetiva. Definimos
e sobrejetiva implica que para algum .
Se então , pela definição do conjunto . Também, se então , ou seja, , uma contradição.
Em particular, temos
A hipótese do contínuo: Por quase um século após a descoberta de Cantor de que há diferentes infinitos muitos matemáticos atacaram o problema de descobrir se existe um conjunto tal que . Suspeitava-se que tal conjunto não existiria e a proposição que não existe tal é conhecida como hipótese do contínuo. Gödel, nos anos 1930, provou que a negação da hipótese do contínuo não pode ser provada a partir dos axiomas ZFC. Em 1964, Paul Cohen descobriu que nenhuma prova pode deduzir a hipótese do contínuo a partir dos axiomas de ZFC. Tomados em conjunto, os resultados de Gödel e Cohen significa que dos axiomas padrão da Teoria dos Conjuntos não se pode decidir se a hipótese do contínuo é verdadeira ou falsa; nenhum conflito lógico surge a partir da afirmação ou negação da hipótese do contínuo. Dizemos que a hipótese do contínuo é independente de ZFC. Assumindo a hipótese do contínuo
O seguinte resultado é bastante famoso, ele é altamente não trivial no caso de conjuntos infinitos. A utilidade deste resultado vem do fato que, em geral, estabelecer uma bijeção que comprove pode ser muito difícil enquanto que estabelecer funções injetivas que comprovem e é mais fácil.
Teorema 42 (Teorema de Cantor–Bernstein–Schröder) Se e então .
Uma demonstração será dada adiante.
Uma dúvida que pode surgir nesse momento é saber se vale a lei de tricotomia para cardinalidades, ou seja, para quaisquer e , ou , ou , ou . De fato, vale tal lei se assumirmos que vale o axioma da escolha. Nesse caso, vale que para qualquer conjunto
- se então é finito e enumerável;
- se então é infinito e enumerável;
- se então é infinito e não enumerável.
Demonstração do Teorema de Cantor–Bernstein–Schröder (opcional): Antes de demonstrar o teorema vamos adotar a seguinte convenção notacional: .
Demonstração: Sejam e conjuntos tais que e e vamos mostrar que . Sejam e funções injetivas, que existem por hipótese. Vamos mostrar que existe uma bijeção . Definimos, para todo
onde é o subconjunto de formado pela imagem dos elementos de . Vamos mostrar que existe tal que . Primeiro, notemos que par uma sequência qualquer de subconjuntos de temos
Tomemos
onde donde temos
logo pois . Desse modo dada por
é uma bijeção. Que é sobrejetiva: seja . Se , então para , portanto ; senão, , ou seja , logo logo , portanto é sobrejetora. Que é injetiva: sejam com . A demonstração segue em três casos; se então ; se , então , e se , ou seja , então , portanto ; se então . Em todos os casos , logo é injetora.
Professor,
Primeiramente, obrigada pelo post, foi muito útil. Segundamente, gostaria de apontar que, no item 7.5, está escrito:
1. se |A| |A|, então A é infinito e não enumerável.
Isso está certo, ou é o sinal de > que apareceu trocado?
tem razão, o sinal está trocado, corrigido.
obrigado
Na definição 21, quando é definido o que é uma função bijetiva está escrito:
“Uma função … é bijetiva quando for injetiva e bijetiva..”, acredito que onde é dito “injetiva e bijetiva” deveria ser “injetiva e sobrejetiva”.
corrigido, obrigado